terça-feira, 19 de maio de 2009

Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.
Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.
Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.
Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.
Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.
Que perfeito coração
no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.

Fala 

              

Fala a sério e fala no gozo 


Fá-la pela calada e fala claro

Fala deveras saboroso

Fala barato e fala caro

Fala ao ouvido fala ao coração 


Falinhas mansas ou palavrão


Fala à miúda mas fá-la bem 


Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe


Fala francês fala béu-béu 


Fala fininho e fala grosso

Desentulha a garganta levanta o pescoço

 
Fala como se falar fosse andar 


Fala com elegância - muito e devagar. 


A Meu Favor

 

A meu favor


Tenho o verde secreto dos teus olhos


Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor


O tapete que vai partir para o infinito


Esta noite ou uma noite qualquer

 

 A meu favor


As paredes que insultam devagar


Certo refúgio acima do murmúrio


Que da vida corrente teime em vir


O barco escondido pela folhagem

O jardim onde a aventura recomeça.  

Má consciência

 

O adjectivo

Dá-me de comer.

Se não for a ele

O que houvera de ser?

 

Vivo de acrescentar às coisas

O que elas não são.

Mas é por cálculo,

Não por ilusão.

 

          À maneira de Benamor Lopes

 

A vida não é de abrolhos.

É de abr’olhos

 

A vida não é de escolhos

É de escolhas.

 

Por que me olhas e m’olhas?

Por que me forras a alma

Com o relento de um sentimento?

 

Serei eu a tua escolha?

 

Abre os olhos e olha,

               Que eu já me escolhi em ti.  

Canção

 

Que saia a última estrela

Da avareza da noite

E a esperança venha arder

Venha arder em nosso peito

 

E saiam também os rios

Da paciência da terra

É no mar que a aventura

Tem as margens que merece

 

E saiam todos os sóis

Que apodrecem no céu

Dos que não quiseram ver

-       mas que saiam de joelhos

 

E das mãos que saiam gestos

De pura transformação

Entre o real e o sonho

Seremos nós a vertigem

Amigo

Mal nos conhecemos 
Inaugurámos a palavra «amigo».

«Amigo» é um sorriso 
De boca em boca, 
Um olhar bem limpo, 
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece, 
Um coração pronto a pulsar 
Na nossa mão!

«Amigo» (recordam-se, vocês aí, 
Escrupulosos detritos?) 
«Amigo» é o contrário de inimigo! 
«Amigo» é o erro corrigido,

Não o erro perseguido, explorado, 
É a verdade partilhada, praticada.

«Amigo» é a solidão derrotada!

«Amigo» é uma grande tarefa, 
Um trabalho sem fim, 
Um espaço útil, um tempo fértil, 
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!

Redacção

Uma senhora pediu-me
um poema de amor.

Não de amor por ela,
mas «de amor, de amor».

À parte aquelas 
trivialidades «minha rosa, lua do meu céu interior»
que podia eu dizer
para ela, a não destinatária,
que não fosse por ela?

Sem objecto, o poema
é uma redacção
dos 100 Modelos
de Cartas de Amor.

O melhor pretexto

     

É tão frágil a vida,

tão efémero, tudo!

(Não é verdade, amiga,

olhinhos-cor-de-musgo ?)

    

E ao mesmo tempo é forte,

forte da veleidade,

de resistir à morte

quanto maior a idade.

  

Assim, aos trinta e sete,

fechados alguns ciclos,

a vida ainda pede

mais sentimento, vínculos.

    

Não tanto os que nos deram

a fúria de viver,

como esses descobertos

depois de se saber

     

Que a vida não é outra

senão a que fazemos

(e a vida é uma só,

pois jamais voltaremos).

   

Partidários da vida,

melhor: do que está vivo,

digamos "não!" a tudo

que tenha outro sentido.

  

E que melhor pretexto

(quem o saiba que o diga!)

teremos p'ra viver

senão a própria vida?

 

 

Há palavras que nos beijam



 

Há palavras que nos beijam


Como se tivessem boca.


Palavras de amor, de esperança,


De imenso amor, de esperança louca.



 

Palavras nuas que beijas


Quando a noite perde o rosto;


Palavras que se recusam


Aos muros do teu desgosto.

 



De repente coloridas


Entre palavras sem cor,


Esperadas inesperadas


Como a poesia ou o amor.



 

(O nome de quem se ama


Letra a letra revelado


No mármore distraído


No papel abandonado)



 

Palavras que nos transportam


Aonde a noite é mais forte,


Ao silêncio dos amantes


Abraçados contra a morte.  

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